Um olho, um tronco humano se retorcendo, um pássaro alçando voo, as pétalas de uma bromélia – o bloco de rascunhos do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, dizem, parece mais de um estudante de artes plásticas que passou a tarde no museu. Quem vê duvida que sejam os primeiros esboços de qualquer construção. Mas basta olhar os edifícios projetados por ele para entender: Calatrava inspira-se em formas da natureza.
O olho virou um planetário em Valência, na Espanha; o tronco, um prédio de 54 andares em espiral na Suécia; e a bromélia será o Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio de Janeiro. O prédio de 15.000 metros quadrados – que custará R$ 215 milhões e abrigará um museu de ciência dedicado à sustentabilidade – deverá ser inaugurado antes da Copa do Mundo de 2014.
A arquitetura pode ter várias funções. Em nossas casas, intimista, pode servir para criar conforto; em uma catedral gótica, monumental, lembra a insignificância do homem diante de Deus. E, nas cidades, pode resgatar áreas abandonadas pelos habitantes e pelo poder público. É o que se espera que o museu de Calatrava faça pelo Porto do Rio. É uma área de industrialização antiga, que vem perdendo
relevância econômica ao longo das últimas décadas.
A ideia é que o museu – cujo projeto é tocado em parceria com a Fundação Roberto Marinho, instituição sem fins lucrativos ligada ao mesmo grupo que publica ÉPOCA – sirva de âncora para a revitalização. Espera-se também que a edificação se torne um dos símbolos da cidade.
O projeto para a região portuária do Rio é inspirado na transformação pela qual passou a cidade espanhola de Bilbao a partir de 1977. O maior símbolo da mudança é o Museu Guggenheim, projetado pelo arquiteto Frank Gehry em 1992, um marco da arquitetura contemporânea.
Na Idade Média, a cidade fora um centro comercial, graças à atividade portuária. Manteve esse status na primeira Revolução Industrial, para perdê-lo a partir dos anos 1980. Ficou entregue à ferrugem de suas máquinas.
Havia dúvidas de que o museu, com suas curvas sinuosas, estrutura caótica e fachada de titânio, pudesse ser construído. Só com softwares modernos o cálculo estrutural pôde ser feito. Valeu a pena. Só no primeiro ano, mais de 1 milhão de turistas visitaram a cidade para conhecer o edifício.
Desde 2001, ela recebe cerca de 100 mil por mês. O fenômeno ganhou nome: “Efeito Bilbao”. E cidades em declínio tentam copiá-lo. O Rio perdeu espaço e prestígio a partir dos anos 1960, com a mudança da capital federal para Brasília.
Nos últimos anos, sobretudo com a escolha da cidade, em 2010, para sediar as Olimpíadas de 2016, a metrópole fluminense vive uma recuperação econômica. O museu desenhado por Calatrava pode servir como um marco dessa nova fase.
“É verdade que um museu muda o olhar que as pessoas têm sobre um lugar. Mas um simples prédio não é capaz de mudar nada. É preciso pensar em seu entorno”, afirma João Calafate, professor da Faculdade de Arquitetura da PUC-Rio.
É verdade que um edifício em si não muda muita coisa. Em Bilbao, o Guggenheim não chegou sozinho: veio acompanhado de um planejamento urbano maior.
Outras obras – como o aeroporto, assinado pelo próprio Calatrava – e investimentos foram necessários. Se o Rio tem de lidar com a violência do tráfico de drogas, Bilbao precisou lutar contra ataques terroristas de separatistas bascos. Foi o primeiro passo para a mudança de uma era industrial para uma pós-industrial, com uma economia voltada para serviços. Hoje, a cidade tem mais de 800 mil habitantes em sua zona metropolitana.
Em Bilbao, uma obra de arquiteto de grife mudou a história de uma cidade. Há outros exemplos em que a revitalização se restringe a um bairro. Foi o que ocorreu com a região do Marais, em Paris. Apesar da arquitetura imponente, o Marais se tornou um reduto proletário depois da Segunda Guerra Mundial. Seus prédios históricos, no período, estavam muito degradados.
Para ter uma ideia da imagem do lugar, a música infantil que diz “eu sou pobre de marré”, vem do francês “pauvre du marais”. Tudo mudou a partir de 1977, quando foi inaugurado perto do bairro o Centre Georges Pompidou, o principal museu de arte moderna da cidade. Além de seu acervo, a construção – projetada pelo italiano Renzo Piano – é considerada um marco da arquitetura contemporânea.
Seu esqueleto de tubos coloridos fica visível na fachada. Hoje, alguns dos melhores bares e restaurantes da cidade ficam no bairro, que também virou um polo internacional de turismo gay. A praça em frente ao museu fica cheia de artistas de rua, entre músicos e os famosos clowns franceses. Perto dali, uma fonte foi construída em homenagem ao compositor Igor Stravinski – e se tornou outro ponto turístico.
“A arquitetura gera uma inquietação na paisagem. A ideia dessas construções é criar uma zona de fruição urbana e estética”, afirma Hugo Barreto, secretário-geral da Fundação Roberto Marinho, um dos responsáveis pela pesquisa que criou o conceito do Museu do Amanhã. Como os exemplos de Bilbao e Paris mostram, duas coisas mudam quando um prédio desses é construído.
Uma é o apelo visual da construção em si, seu valor como arte. São bonitos de olhar. Isso faz o local entrar nas rotas internacionais dos turistas interessados em arquitetura. Seus arquitetos são encarados como grandes escultores – e alguns transitam entre a construção e a escultura mesmo. O próprio Frank Gehry, do Guggenheim, assina a escultura Peix (peixe, na tradução do catalão) no Porto Olímpico de Barcelona, revitalização que também inspira o que vem acontecendo no Rio de Janeiro.
O Museu do Amanhã, como todos os projetos citados até aqui (leia os exemplos abaixo), não está sozinho. Nem poderia. A região portuária é protegida pelo Patrimônio Histórico Nacional. Nenhum prédio pode bloquear a visão do Mosteiro de São Bento para quem chega de navio pela Baía de Guanabara. Na outra ponta do porto, vai ficar o Museu de Arte do Rio (Mar), a outra âncora de revitalização da área, formando um corredor cultural.
Oscar Niemeyer, Santiago Calatrava, Frank Gehry, Zaha Hadid – a arquitetura contemporânea transformou seus autores em celebridades internacionais. Em inglês, existe até a expressão “starchitect” (algo como arquitetos estrelas) para defini-los.
Há também quem se refira ao fenômeno como “arquitetura do espetáculo”. Com a crise econômica, as encomendas aos “starchitects” diminuíram bastante na Europa e nos Estados Unidos. Seriam o Brasil e os outros emergentes os próximos destinatários das grandes construções? Ainda é cedo para saber. Mas o Museu do Amanhã pode ser um sinal.
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